O DIA EM QUE MORRI: MISTÉRIOS DO COMA E DA EQM

Montagem sobre foto Laílson Santos
 


A criação de aparelhos que flagram o cérebro em plena atividade e os avanços na compreensão do funcionamento cerebral vêm revolucionando os conhecimentos sobre o coma. Hoje a maioria das pessoas consegue sair do estado de vazio absoluto e os médicos pensam até na possibilidade de recuperar pacientes em estado vegetativo
Se existe uma condição em vida considerada semelhante à morte, é o estado de coma, caracterizado pela falta de consciência. Nesse vazio, não haveria lugar para emoções, sentimentos, sonhos ou pensamentos. Alguém em coma não falaria, não veria, não escutaria, não sentiria cheiros. Enfim, não haveria nenhuma reação a esperar desse paciente. Do grego kóme, a palavra "coma" significa "sono profundo". Descrito pela primeira vez no século V a.C. por Hipócrates, o grego considerado o pai da medicina, o conceito de coma era visto até pouco tempo atrás como uma espécie de prelúdio da morte. Nos últimos anos, porém, o refinamento de máquinas capazes de flagrar o cérebro em atividade e a maior compreensão de seu funcionamento vêm causando enormes mudanças nos conhecimentos médicos sobre o coma. "Nunca estivemos tão próximos da realidade dos pacientes comatosos", diz o intensivista Douglas Ferrari, presidente da Sociedade Brasileira de Terapia Intensiva. Essa proximidade está revelando que talvez o coma não seja um vazio tão absoluto como se pensava. 

A cada hora, 400 pessoas entram em coma no Brasil. Nos Estados Unidos, esse número é o dobro. Tanto aqui quanto lá, os motivos são os mais diversos: de acidentes de carro a derrames e infartos, de intoxicação pelo excesso de medicamentos, álcool ou drogas a casos de aneurisma. Vinte em 100 pacientes morrem – até o início dos anos 90, a taxa de mortalidade era de 50%. Dos doentes em coma, 70% conseguem se recuperar. Os 10% restantes evoluem para o chamado coma crônico, ou estado vegetativo. Tais pacientes representam um grande desafio para os especialistas envolvidos no tratamento do coma. Com lesões superiores a 80% do córtex cerebral, a região onde se forma a consciência, eles não têm chance de cura. A maioria depende de mecanismos artificiais de sustentação da vida, como o respirador e as sondas de alimentação. Sua aparência impressiona. Eles têm a boca e os olhos projetados para a frente por causa da retração dos músculos da face e da desnutrição – a nutrição endovenosa jamais substitui por completo a natural. Diante de um quadro como esse, não há praticamente nada a ser feito. Atualmente, os cuidados médicos resumem-se a tentar garantir o bem-estar do paciente – como evitar a formação de escaras. Para a família e os amigos, a convivência com o doente em coma é devastadora. É como conversar, fazer carinhos e esperar respostas de uma estátua de cera. Mas o parente ou o amigo querido está ali, vivo, o coração pulsando, o sangue quente, os olhos ora abertos, ora fechados. 

Um estudo publicado recentemente na revista científica americana The New England Journal of Medicine trouxe uma notícia impressionante. Sob a coordenação do neurocientista Adrian Owen, da Universidade de Cambridge, pesquisadores ingleses e belgas, esses últimos da Universidade de Liège, testemunharam a reação de um rapaz de 22 anos, em estado vegetativo, a estímulos verbais. A pesquisa contou com outros 22 pacientes em condições semelhantes. Todos tinham o hábito de jogar tênis. A cada um deles, foi pedido ao pé do ouvido que se imaginasse praticando o esporte e andando pelos cômodos de sua casa. Enquanto as situações eram expostas verbalmente a esses doentes em estado vegetativo, uma máquina de ressonância magnética funcional rastreava-lhes a atividade neural. Quatro deles deram sinais de que compreendiam o estímulo. Na cena do jogo de tênis, "acenderam-se" os neurônios responsáveis pela coordenação motora. Naquela que tinha como cenário a casa de cada um, os circuitos "ligados" associavam-se ao sentido espacial e à memória. Em seguida, a equipe de Owen pediu que os pacientes visualizassem a partida de tênis quando quisessem responder afirmativamente a uma determinada questão. O "não" equivaleria à lembrança da caminhada pela casa. Apenas um paciente, o rapaz de 22 anos, deu as respostas corretas. Quando os médicos disseram o nome do pai do jovem e quiseram saber se estavam certos, os "neurônios do tênis" foram estimulados. Em relação a outros nomes masculinos, as conexões neurais ativadas foram as do passeio pela casa.
A primeira reação ao estudo de Owen é de perplexidade. Será que os pacientes em coma crônico têm consciência de seu estado? Será que eles ouvem e entendem tudo ou pelo menos parte do que acontece ao seu redor? Ainda é muito cedo para dizer que existe vida consciente no estado vegetativo. A reação do rapaz de 22 anos pode ter sido uma manifestação isolada – uma experiência única. Além disso, o número de pacientes que responderam ao primeiro estímulo é muito reduzido – quatro, apenas, em 23. É inegável, no entanto, que o estudo de Owen é o primeiro passo rumo a uma nova linha de pesquisas sobre o coma. "Confirmada em um grupo maior de doentes, a nossa descoberta poderá despertar o interesse dos médicos em estimular a atividade cerebral desses pacientes, na tentativa de tirá-los do estado vegetativo", disse Owen a VEJA. "Por menor que possa ser o restabelecimento, ele sempre representa um alívio para os familiares."

Obviamente, como sempre ocorre quando a ciência esbarra em discussões sobre vida e morte, o artigo publicado no The New England Journal of Medicine acirrou a polêmica em torno da eutanásia. Na Holanda e na Bélgica, ela é permitida em pacientes em estado vegetativo. Nos Estados Unidos, é crescente o número de ações judiciais permitindo o desligamento dos aparelhos de sustentação da vida em situações de coma crônico. O mais notório deles ocorreu em 2005, com a americana Terri Schiavo. Depois de ela ficar quinze anos em coma, seu marido, Michael Schiavo, o guardião legal de Terri, conseguiu a permissão da Justiça para retirar a sonda que alimentava e hidratava sua mulher – contra a vontade dos pais dela. Terri morreu após treze dias.

Quando o assunto é o coma agudo, aquele em que pelo menos 50% do córtex cerebral está comprometido, as conquistas da medicina são espetaculares. Hoje, em 100 pacientes, 21 saem do coma sem nenhuma sequela – nos anos 80, a proporção não chegava à metade disso. O caso de Atef Zein Sammour, de 15 anos, é exemplar da mudança no prognóstico do coma. Em 2008, durante uma competição de jet ski no litoral paulista, o garoto sofreu traumatismo craniano. Até ser socorrido, Sammour engoliu muita água, o que comprometeu os pulmões, agravando sua condição. Durante os doze dias em que permaneceu em coma, ele ainda sofreu convulsões. O garoto, no entanto, não só se recuperou rapidamente (em duas semanas estava em casa) como saiu do acidente sem nenhuma marca. "Uma história de sucesso como essa era inimaginável até pouquíssimo tempo atrás", diz o neurointensivista Fábio Machado, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. A convulsão é uma ocorrência relativamente comum no coma agudo. Até os anos 90, no entanto, era subestimada pela maioria dos neurologistas. Com a popularização do exame de ressonância magnética, descobriu-se que as convulsões matam milhares de neurônios em poucos segundos, contribuindo para o aumento do risco de sequelas. Hoje, nos centros de referência em neurologia, o paciente tem seu cérebro monitorado em tempo integral e toda convulsão é imediatamente tratada com anticonvulsivantes, medicamentos tradicionalmente usados nas crises de epilepsia.

Um dos marcos mais importantes no tratamento do coma foi a criação, em 1929, do exame de eletroencefalograma pelo neurologista e psiquiatra Hans Berger (1873-1941), da Universidade de Jena, na Alemanha – e a comprovação de que o cérebro funciona mediante impulsos elétricos, sob a forma de ondas oscilantes e constantes. O eletroencefalograma foi o primeiro método de acompanhamento da atividade cerebral. Com ele, a neurologia passou da idade da pedra para a idade das luzes. Até então, acreditava-se que o cérebro era uma massa cinzenta, cujo funcionamento ocorria por meio da interação de substâncias químicas. 

A perda de consciência decorre da morte dos neurônios ou da redução drástica da atividade neural. Em um primeiro momento, a baixa no funcionamento dos neurônios é um mecanismo de defesa do organismo, de modo a poupar energia das células cerebrais. Na maioria das vezes, elas resistem à queda de atividade por até um mês. Depois disso, os danos são irreparáveis. Outra descoberta recente (e alentadora) é que os neurônios têm uma incrível capacidade de regeneração. Esse processo ainda não está completamente desvendado. A hipótese mais aceita é que, ao redor da região lesionada na célula, aumentem o número de sinapses, para compensar as conexões interrompidas. Para que isso ocorra, no entanto, é imprescindível que o paciente receba socorro quanto antes. Um neurônio que fique praticamente privado de oxigênio por duas horas, por exemplo, tem apenas 30% de suas funções restabelecidas.
O primeiro foco de atenção dos médicos é o córtex cerebral. "Trata-se de uma área cujos neurônios têm uma capacidade de formar sinapses incomparável em relação à de outras regiões cerebrais", diz Gilberto Xavier, do departamento de fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Localizado na camada mais externa do cérebro, com 1,5 milímetro de espessura, o córtex tem 20 bilhões de neurônios – 20% da quantidade total. É onde se forma a consciência e se define o comportamento. O primeiro indício da relevância do córtex na definição de quem somos e como agimos ocorreu no século XIX. Em 1848, durante a construção de uma linha de trem, o operário americano Phineas Gage sofreu um acidente terrível enquanto manipulava explosivos. A parte da frente do córtex, conhecida como lobo frontal, foi gravemente lesionada. O acidente fez com que sua personalidade mudasse drasticamente. Gage, que sempre fora um homem prudente e educado, tornou-se impetuoso e grosseiro. A maioria das pessoas que hoje saem do coma fica com algum tipo de sequela

Há relatos extraordinários do momento em que pessoas entraram ou saíram do coma, como se vê pelos depoimentos ao longo desta reportagem. Algumas delas falam sobre uma luz acolhedora; outras, sobre o encontro com parentes e amigos já mortos. Há ainda quem se veja flutuando pelo quarto, enquanto seu corpo jaz sobre a cama do hospital. Tais experiências não correspondem ao período de falta de consciência, como acredita a maioria, mas aos momentos que antecedem ou sucedem ao coma. São uma espécie de "último suspiro" ou "primeiro suspiro" da consciência. "Nessas ocasiões, os neurônios funcionam fora do ritmo, e esse descompasso elétrico pode levar a uma percepção distorcida da realidade", diz o neurologista Paulo Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo. O vazio absoluto, ele próprio, não deixa recordações. Se é que ele é mesmo tão absoluto...

Adriana Dias Lopes
A partir da revista Veja. Leia no original

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