Em apenas duas semanas em cartaz, o filme Nosso Lar, que é baseado em um livro de Chico Xavier e que acompanha a jornada de um médico após a morte, foi visto por mais de 2 milhões de espectadores quando a maioria dos longas nacionais não alcança cem mil. Antes disso, Bezerra de Menezes e Chico Xavier já haviam sido fenômenos semelhantes de bilheteria chamando a atenção para a força da doutrina espírita, religião discreta mas de presença constante na sociedade brasileira.
Codificado em meados do século 19 pelo pensador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, sob o pseudônimo Allan Kardec, o espiritismo não demorou a chegar ao Brasil. A Federação Espírita Brasileira foi fundada já em 1884, em sintonia com a disseminação da doutrina pelo mundo (a American Society for Psychical Research, nos EUA, surgiu em 1885, e um Congresso Espírita Internacional ocorreu em Paris em 1889). O que torna o caso brasileiro peculiar é que, enquanto o espiritismo perdeu força no planeta, ele plantou raízes profundas no Brasil, país com o maior número de adeptos.
“O que há de novo nesse ressurgimento é o interesse do cinema em explorar artisticamente o espiritismo, porque no Brasil ele se mantém forte”, diz Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de “O Mundo Invisível: Cosmologia, Sistema Ritual e Noção da Pessoa no Espiritismo” (Jorge Zahar, 1993).
A explicação para tal circunstância passa por algumas hipóteses traçadas por um bom número de teses e estudos nas áreas de sociologia e antropologia. Em sua tese “O Cuidado com os Mortos: uma História da Condenação e Legitimação do Espiritismo”, o pesquisador Emerson Giumbelli já estudava como o espiritismo se enraizou e se desenvolveu no Rio de Janeiro. E apontava que a doutrina, muito calcada no cientificismo em voga no panorama intelectual de fins do século 19, ocupou um espaço destinado à religião em um momento em que os campos tradicionais do saber se viam questionados.
O espiritismo nasce como uma religião científica (seus adeptos, na maioria, a consideram uma doutrina filosófica, não uma fé religiosa) e, nesse sentido, tem pontos de contato com o Positivismo, por exemplo. E, como uma religião que se vê como ciência, é uma crença com poucos dogmas, o que facilitou sua aceitação pela sociedade brasileira, naturalmente sincrética. “O espiritismo é uma crença de camadas letradas e urbanas da população. E no Brasil teve o papel importante de, no campo religioso, fazer uma espécie de mediação entre o catolicismo e o amplo universo das religiões afrobrasileiras”, analisa Maria Laura Cavalcanti. Outro ponto que explica o sucesso da doutrina espírita no Brasil é Chico Xavier. Sua figura é imensamente popular.
“Chico Xavier representa um divisor de águas do espiritismo no Brasil. Ele atuou 75 anos como divulgador, com dedicação e coerência, e deixou um legado de 450 livros, além de seu exemplo pessoal, sua história de caridade e humildade”, diz Antonio Cesar Perri de Carvalho, secretário-geral do Conselho Federativo da Federação Espírita Brasileira.
Pesquisadores como Sandra Jacqueline Stoll, autora de “Espiritismo à Brasileira” (Edusp/Orion, 2004) e Bernardo Lewgoy, autorde “O Grande Mediador: Chico Xavier e a Cultura Brasileira” (Edusc, 2004), apontam que Chico, embora não endossasse tal interpretação, tornou-se na imaginação popular um modelo de “homem santo”. Lewgoy, professor de pós-graduação em antropologia social analisa: “Chico passa por uma ‘santificação informal’. Sua biografia tem pontos que correspondem a uma ‘vida de santo’: origem humilde, criação católica, as mensagens que recebe da mãe incentivando-o a suportar as dificuldades de sua missão. E ele foi um gênio em atualizar o espiritismo para o País”.
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