Parece que faz um século, mas foi ontem. Não podíamos tocar em nada. Não podíamos ver ninguém. Descobrimos a roda que havia no álcool gel. E transferimos para os olhos, os egos da boca e do nariz. O medo de morrer era o sentimento de todas as horas —e não de duas vezes por dia, como deve ser em quem já passou dos 40. E a vida se mudou de vez para o celular.
Lembrei isso tudo ontem, quando soube da morte da jornalista Mônica Figueiredo. Ficamos amigas na pandemia, quando ficou liberado gostar através de telas. Mônica já era um nome cravado na minha calçada da fama desde os anos 1990 por causa da revista Capricho. Foi vendo seu trabalho que me apaixonei por revistas. Foi sob sua curadoria que aprendi sobre sexo, menstruação, masturbação e camisinha. Coisa de mãe.
Ou não. A minha, que segue hospitalizada e de quem sempre me queixei por não conversar muito, tocava piano, lia e me levava à missa. Mas me levou pra ver "E.T." e "A Hora da Estrela", e fazia questão que eu gostasse de livros. Eça, Machado e Erico Verissimo, minha filha. Pelo amor de Deus! E dá-lhe Jesus com Capitu, Basílio com Nossa Senhora, Ana Terra com Santa Terezinha.
Mônica, ao contrário, me parecia bem, menos ligada à turma religiosa. Seu rolê era da música, do vinho, do teatro, e —viva a contradição!— dos bordados. Nos aproximamos por causa deles.
Fernanda Young, uma de suas inúmeras parceiras —esse céu tá cada dia melhor, hein?— fez a ponte. E lá fomos nós falar sobre tudo e mais um pouco, em lives, áudios e mensagens de WhatsApp. Liberdade, essa era a regra. Poder ser quem se é. Pelo menos em dupla.
No final de julho, recebo, via Olivia Byington, a notícia de que minha amiga, com quem nunca encontrei pessoalmente, tinha pouco tempo de vida. Havia emagrecido muito, mas achava que era por ter parado de beber. Foi por um alerta de Preta Gil, explicando que estava magra por estar doente e que não queria mais receber elogios por isso, que Mônica e Olivia decidiram fazer exames. Câncer de pulmão.
Não sei se este é um texto triste. Talvez seja, porque eu estou chorando. Mas como eu choro à toa —e sou atriz—pode ser alarme falso. E uma lembrança útil. Ter consciência do tempo. Que pode ser pouco. Se cercar de mulheres que falam. Entender as que tocam piano.
Nunca amei tanto a minha mãe quanto agora. E torço para que ela dure mais um ou dois anos, conforme temos conversado.
Tenho 47 anos. E não tenho a menor ideia de quantos anos ainda tenho por aqui. Mas pensar na morte com alguma frequência, um pouco como fazia nos tempos da pandemia, tem me feito mais bem do que mal. Porque o ar que agora uso para estar aqui e dizer coisas contém Fernanda Young, Monica Figueiredo e minha mãe. Porque a minha intensidade tem lastro, e minhas lacunas, também.
Publicado originalmente no Pirtal UOL.
Imagem : Alice Shardsn, PEXELs
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